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O Album





Quarto Suítes Alguns Cômodos e Outros nem Tanto







A busca pela síntese é quase uma obsessão humana. Algo que resuma, que agrupe, que decifre. Catálogos, listas, manuais e regras. A política.

Está tudo na frequência da síntese.

A hipnose do comum talvez esteja sintetizada nesse desespero que sentimos. Quando as oposições se inflamam, a ruptura finda por nos quebrar. Não pela abrangência da fissura, mas pela fissura na abrangência. A tal polarização, num jogo torpe de palavras, vira paralisação. A pilha melou.

É aí que entra Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros nem Tanto. Longe de ser antídoto de qualquer coisa, o álbum de Alexandre Nero joga luz no desespero, enquanto equilibra-se no abismo das contradições - e na contramão da síntese. "Fazia anos que eu não compunha", me disse ele. E, até nisso, a contradição se impõe: o cantor/compositor Alexandre Nero nada até a superfície e enche os pulmões justamente quando o país mergulha na maior catatonia de sua história. Abismo é acidente e acidente não é síntese. Então, embora sendo um álbum de canções, ele soa uno, abissal e pontiagudo, com a música a serviço do relevo.

1) E que relevo! Aquele conjunto de canções que havia sido concebido, quase totalmente, no ambiente íntimo da trova-violão, foi vestido por uma orquestra de cordas, baseada em São Petersburgo, na Rússia. A pós-modernidade promovendo viagens através de fronteiras, oceanos e cordilheiras, na aventura dos arranjos (magistrais, de Antonio Saraiva, produtor do álbum), da regência remota, da busca pela síntese - sempre ela! - a revelar as - sempre elas! - contradições (uma ode a tudo que é universalmente particular). Como cartógrafas não-temperadas (embora não destemperadas), as cordas vão - em forma de sonhos e partituras - e voltam, já transformadas em waveforms e terabytes… e sonhos. Trazem as marcas da viagem e redesenham a topografia sonora do álbum, mixado por Kassin com o cuidado de não achatar (e talvez desatachar) o som.

2) E que relevo! Desde o céu de aranha-chão, poderosa imagem anti-urbana contida em Lajedo do Sertão (que, segundo o próprio Nero, serviu de lampião para o projeto), até o paranóico e ultrametropolitano caos sem cais de Sem Mais, canção que encerra o disco. A terra rachada pela secura pode ser tão sufocante quanto o desenho voraz das arquiteturas humanas - aço, ferro, ouro, cobre e latão, como na fundição-fantasia de Bola de Fogo, que é o próprio sol do céu de arranha-chão - quem dirá que não? A contradição segue cerzindo (ou cisando) o álbum, que já abre com a poesia de Aldir Blanc expondo o vírus (que) nos virou do avesso, nos arremessou pra dentro. E por dentro de Virulência, última parceria de Aldir em vida (com Nero e Saraiva), ele suplica: é preciso inventar um lado de fora. Enquanto isso segue Nero, incendiando em pernas de pau e buscando a Beleza na Tristeza, o encanto além do pranto de Mata e os silêncios que existem nos carnavais de Meu Bloco Tá Aí. Aqui e ali, sempre o sabor agridoce da dicotomia, pairando, como uma fábula do real, quase um spin-off distópico do realismo fantástico. Se A Partícula do álbum é a contradição, natural que queiramos enganar a morte e a vida a um só tempo. Concepção é vida e morte, início e fim. É o réveillon no esplendor de um lado, sugerindo o término de um ciclo, e a criança incriminada em cor do outro, mostrando que o ciclo é interminável, tudo convivendo na mesma Nossa Senhora de Copacabana. É essa mesma cor incriminada que carrega consigo muitas outras vidas e muitas outras vozes. Não é à toa o arrepio quando Milton Nascimento, qual entidade que é, traz sua voz e sua transcendência para Em Guerra de Cegos. Nero sugere: dai um pouco desse doce; e Bituca completa: nesse mar de sal. Arrepio que se perpetua quando Elza Soares, entidade tal e qual, assume, em uníssono com Nero e tom quase divino, o papel de miseráveis artistas do cão.

Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros nem Tanto torna-se, assim, a engenharia do impossível, ao mostrar, como numa ilusão holográfica, um mesmo artista: tão coerentemente íntegro e tão atavicamente fragmentado. A contradição, pois.

“ - Estou trabalhando nos arranjos do novo disco do Alexandre Nero…”
“ - Sei, aquele ator…

”Conheci o Nero em seu primeiro show como vocalista do grupo Fato, de Curitiba. Isso foi no Rio. Sua potência e energia como cantor e sua presença em cena eram um evidente magneto da atenção de quem estava na plateia. Devido à minha proximidade com o Fato (tinha produzido o primeiro álbum do grupo), nosso primeiro contato já vinha com meio caminho andado e começamos ali conversas e copos intermináveis. A amizade (e admiração) se desenvolveu ao ponto de quando em CWB, meu pouso ser na certa o château do Nero. Apesar da doce hospitalidade os encontros eram breves pois o irrequieto e intenso cantor e violonista atravessava noites entretendo bebuns nos bares, ensaiando tamancos, convenções e polirritmos com o Fato e nos desvairados shows do Denorex 80 desfilando hits e mais hits para plateias enlouquecidas.

Conto um pouco de história para apresentar meu ponto de vista: Alexandre Nero para mim é um músico. O astro das telas é um personagem recente e paralelo. Quando Nero me convocou para o que viria ser esse album, me apresentou muito mais canções do que as que acabaram sendo gravadas. Ele me disse estar distante da música há um tempo, mas súbito uma faísca se acendeu e a partir daí novas canções surgiram e outras que estavam adormecidas despertaram com novos sentidos e fulgores.

Passamos um bom tempo em encontros, só de violão e piano, olhando, pensando, conversando, mexendo e remexendo essas canções até que elas encontrassem a forma e feição para virem à tona. A pandemia e o pandemônio vieram atravessar nossa conversa. Nos jogaram pra dentro, nos jogaram para o alto, nos jogaram para baixo. E nos jogaram para fora! Da vastidão do sertão à claustrofobia do quartinho, dos solitários colóquios online às majestosas cordas russas, essas canções foram nossa jangada nesse mar bravo. Começamos a avistar agora as novas terras onde essa embarcação nos trouxe. Não troquei uma nota ou acorde dessas canções. Elas são integralmente o que Nero compôs. Os arranjos que escrevi brotam do que essas melodias, harmonias e letras propõem. Alexandre Nero para mim é um músico.
Antonio Saraiva
produtor do álbum
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